Acabamos de ler no site www.jornaldosertao.com uma matéria que certamente estará na mídia nacional, a triste notícia do falecimento do ex-governador de Sergipe, João Alves Filho, um permanente defensor do rio São Francisco.
O site reproduz uma nota do governo do Estado de Sergipe com o título “Sergipe perdeu uma das figuras públicas mais importantes da sua história”, seguido do texto:
“Faleceu na madrugada desta quarta-feira, 25, o ex-governador João Alves Filho, de 79 anos. Ele estava internado desde o último dia 18 na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Sírio-Libanês, localizado em Brasília (DF), onde residia atualmente, após sofrer uma parada cardíaca.
João Alves era engenheiro civil de formação e governou Sergipe por três vezes, foi prefeito de Aracaju em dois mandatos e ministro do Interior, além de escritor e membro da Academia Sergipana de Letras.
O governador Belivaldo Chagas decretou luto oficial de três dias e colocou o Palácio Museu Olímpio Campos à disposição da família para as últimas homenagens. Governo do Estado de Sergipe”.
De fato, o Brasil perde, também, um dos grandes defensores do rio São Francisco.
Quando fazíamos o Curso de pós-graduação da ADESG em Paulo Afonso, no ano de 2006, decidimos, em um grupo de 10 pessoas, professores de História, de Geografia, Turismólogos e Especialistas em Turismo, Advogados e até médicos, políticos e militares, preparar a nossa monografia sobre o projeto de Transposição do rio São Francisco e buscamos, para fundamentar a nossa tese, os mais variados e contraditórios depoimentos e posições de pessoas renomadas do país sobre o assunto.
Vimos as preocupações da maior referência em Geografia, o sábio Aziz Abir Saber sobre esse projeto e de muitos outros brasileiros, nordestinos como João Abner Guimarães Júnior, Dom Luiz Flávio Cappio, João Alves Filho, João Suassuna, todos com argumentos contrários a esse projeto como ele estava sendo conduzido e vimos também os depoimentos de Geddel Vieira Lima (então Ministro da Integração), Marina Silva (então Ministra do Meio Ambiente) e do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, todos favoráveis à sua realização, como de fato aconteceu.
João Alves aprofundou os seus estudos sobre esse tema, escreveu muitos artigos, discursou inúmeras vezes, fez palestras, participou de seminários, escreveu livros...
Como uma homenagem ao Dr. João Alves Filho, honrado filho destas terras sertanejas sergipanas, duas vezes prefeito de Aracaju e três vezes governador do Estado de Sergipe, reproduzimos um artigo seu, escrito em 5 de maio de 2005, no auge do calor da discussão sobre o projeto de transposição do rio São Francisco, publicado recentemente pela Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ em seu site, no dia 04 de Junho de 2019.
Nesse artigo, chamado de Transposição insensata, em certo momento ele afirma, categórico: A transposição proposta é socialmente injusta, politicamente desastrosa e provoca a desunião entre irmãos nordestinos.
Vale a pena ler, de novo, ou pela primeira de muitas vezes.
Transposição insensata
João Alves Filho
02/05/2005
O projeto de transposição do rio São Francisco, além de repleto de falhas técnicas, está imerso em ilegalidades, podendo provocar o maior desastre econômico, social e ecológico do Brasil. Além da falta do Relatório de Impacto Ambiental da bacia do rio, imprescindível à aprovação de qualquer projeto que afete o meio ambiente, a transposição agride a Lei de Recursos Hídricos por contrariar critérios e prioridades do Comitê de Bacias do rio, pactuado com Estados banhados pelo São Francisco.
O plano afirma: "A prioridade da bacia são os usos internos, excetuando-se os casos de consumo humano e animal em situação de escassez comprovada" e "as prioridades de uso para fins produtivos ficam restritos aos usos internos", tudo ignorado pelo governo federal.
Diferentemente do que alardeia o governo federal, a água para o consumo humano e animal pode ser transposta para Estados vizinhos, desde que haja escassez comprovada.
Assinale-se, contudo, a insuspeita conclusão da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência): "O eixo Norte (o maior do projeto) é inequivocamente para irrigação".
Acrescentem-se as conclusões do Banco Mundial: "Suprimentos seguros de água para uso doméstico para todo o Nordeste poderiam ser garantidos por meio de outras alternativas, por uma fração do custo do projeto proposto" e "o projeto só afetaria uma pequena parcela da população do Nordeste que sofre falta de água".
De fato, apenas 5% da população do semiárido será atendida, assim mesmo por meio de precários chafarizes, permanecendo o triste espetáculo dos carros-pipas e das latas d'água na cabeça. Só em Minas Gerais se concentram mais de 70% das águas do rio. O governador Aécio Neves, generosamente, abdicou do direito de gerenciar tais águas em favor da sobrevivência do rio, confiando-a ao Comitê Gestor das Bacias de Integração.
Quando o governo federal explora suas águas sem avaliar consequências para sua sobrevivência, ferindo a legislação, nada garante que um próximo governador de Minas adote posição isolada e decida deter as águas do rio para usos econômicos locais, o que significaria caos.
A transposição proposta é socialmente injusta, politicamente desastrosa e provoca a desunião entre irmãos nordestinos.
A morte de rios ocorre em situações em que o homem tentou interferir sem planejamento no curso da natureza, provocando catástrofes, sobretudo em projetos de transposição mal elaborados.
Vi fenômenos desse tipo em viagens que realizei em busca de soluções para o semi-árido. Presenciei tragédias como as do rio Colorado, cujo projeto de transposição os americanos consideram sucesso absoluto, já que transformou regiões desérticas em jardim de produção de alimentos.
No México, porém, a catástrofe: suas águas param a 100 km do mar, provocando a salinização de imensa área fértil.
Outro exemplo do mau planejamento das intervenções humanas nos recursos hídricos está no rio Amarelo, na China, cujas águas param a 550 km da foz, sem atingir o mar durante até nove meses/ano. Nesse caso, milhões de pessoas abandonaram seus lares.
Em debate com o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, a convite da OAB, sugeri a ele que conhecesse os dois rios e visitasse o mar do Aral (Rússia), onde também estive, para ver tragédia ainda maior.
Asseguro que, após conhecer tais exemplos da insânia humana na condução dos rios, ele sustaria projeto tão eivado de erros e ilegalidades. Mas, se o ministro não tiver tempo para essas visitas, que pelo menos conhecesse a foz do rio São Francisco - a qual jamais visitou!- para ver sinais de morte semelhantes aos que vi em rios que morreram pela arrogância de "planejadores" insensatos. Em visita que fiz à China para conhecer o projeto de transposição entre o rio Yang-tsé e Amarelo, me surpreendeu a afirmação de administradores da obra de que o projeto exigiu 50 anos de discussão com o povo chinês, para só então ser iniciado.
Questionei por que um "regime duro" como o da China necessitou de diálogo tão paciente. O vice-ministro que me ciceroneava respondeu prontamente: "Nossa experiência milenar nos ensina que os políticos e os regimes são passageiros, e os interesses da China são permanentes. Ora, não há interesse maior para o povo chinês do que a preservação dos recursos hídricos". Porém, numa democracia, o governo impõe goela adentro uma obra desse tipo sem sequer consultar os governadores dos Estados da bacia doadora
A transposição proposta é, pois, ilegal, socialmente injusta e politicamente desastrosa, porque, além desses problemas, provoca a desunião perversa entre irmãos nordestinos diante da incompetência governamental em não optar por soluções baratas e tecnicamente comprovadas de convivência com as secas e de equacionamento hídrico em várias áreas semiáridas do mundo.