Introdução do Editor:
Os textos na Internet costumam ser bem pequenos. Entretanto ousamos desafiar os que preferem textos em pequenas gotas e trouxemos - pois sei que muitos vão gostar - uma entrevista feita por um jornalista da Revista Comunicação & Memória da Memória da Eletricidade com o muito querido Luiz Fernando Motta Nascimento que, quase a completar 83 anos de idade (em julho de 2022) continua sendo uma memória privilegiada dos nossos tempos, personagem dos fatos e acontecimentos por ele narrados de suas vivências nestas terras sertanejas, desde Forquilha, e suas passagens pelas escolas da Chesf, pelo Ginásio Paulo Afonso, e diretor de duas diretorias da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco a Diretoria de Suprimento e a Diretoria de Construções.
Ao tempo em que agradeço a Dr. Luiz Fernando a gentileza de ter me enviado esse riquíssimo material. As fotos originalmente publicadas pela Revista Comunicação & Memória, por exigência de seus proprietários, foram substituídas por outras do acervo do Memorial Chesf Paulo Afonso.
Assim, fique à vontade. Se não conseguir ler tudo de uma vez, o que duvido muito, leia aos poucos, como os capítulos de um livro. Abraço fraterno.
Antônio Galdino da Silva, muito honrado pela lembrança do meu nome nas linhas finais desse depoimento e feliz por ter indicado o escritor Luiz Fernando Motta Nascimento para ser membro da Academia de Letras de Paulo Afonso, onde ocupa a Cadeira Nº 37, que tem como patrono Augusto dos Anjos.
UM PORTENTO CHAMADO PAULO AFONSO
Entrevista de Paulo Brandi com Luiz Fernando Motta Nascimento
Considerada a maior obra da engenharia nacional em sua época, a Usina de Paulo Afonso, inaugurada em 1955 pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), marcou histórias de vida e trabalho de uma geração de profissionais. Um deles foi Luiz Fernando Motta Nascimento, que chegou à região em 1946 e lá viveu boa parte de sua infância e juventude. Luiz Fernando acompanhou de perto a saga da construção com seu pai, Alfredo Hermínio Nascimento, o mestre Alfredo, da oficina elétrica da Chesf, enquanto ia à escola ali mesmo, tendo como professores os engenheiros e técnicos da Chesf.
Formado pela Universidade Federal de Pernambuco, Luiz Fernando ingressou na Chesf em 1967. Engenheiro tarimbado por larga experiência em funções gerenciais, foi diretor de Suprimentos e de Construção da Companhia. Além de suas memórias e experiências profissionais, Luiz Fernando pesquisou a história do empreendimento para escrever o livro Paulo Afonso: luz e força movendo o Nordeste, publicado em 1998. Nesta conversa, relata o que viveu e apurou sobre essa verdadeira epopeia técnica e humana da história da eletricidade no país.
O que motivou a ida de seu pai e sua família para Paulo Afonso, em 1946?
A Primeira Guerra Mundial já havia dispersado toda a família de meu pai. Meu avô era um fazendeiro e comerciante muito rico no Recôncavo Baiano, mas com a guerra ficou sem nada. Naquele tempo, os navios saíam de Cachoeira e São Félix, no rio Paraguaçu, e seguiam para Salvador e depois para a Europa. Era uma troca de mercadorias, como couro de animais e fumo: os pequenos comerciantes entregavam o produto a ele, que mandava junto a mercadoria que tinha, e pegavam mercadoria de volta. Era um escambo realmente, não existia contrato nem dinheiro em espécie envolvido. Quando uma grande partida não voltou da Europa por causa da guerra, ele teve que vender as fazendas e as lojas de comércio para saldar seus débitos, e ficou sem nada. Meu pai começou a trabalhar muito cedo para sobreviver.
Ele teve a oportunidade de trabalhar na construção, operação e manutenção da usina de Bananeiras.
Exatamente. A usina de Bananeiras foi construída no rio Paraguaçu pelo Eduardo Guinle. A obra começou em 1910 e só terminou em 1920, provavelmente devido à Primeira Guerra Mundial. Meu pai começou como office-boy e trabalhou 20 anos em Bananeiras, de 1917 até 1937, quando teve que fugir de lá para não casar por livre e espontânea vontade da polícia! Ele foi para Morro do Chapéu, uma cidade da Bahia, perto de Juazeiro, de lá para Serrinha, onde casou com minha mãe. Eu nasci em Serrinha.
Depois fomos para Araci, onde nasceram meus dois irmãos. Lá, ele fez de tudo, construía pequenas estradas e instalava redes telefônicas que interligavam as cidades. Trabalhou também na construção da pista do aeroporto de Salvador.
Daí veio a Segunda Guerra e, com a escassez de trabalho no Nordeste, nos mudamos para o Espírito Santo. O irmão de meu pai, Octávio Nascimento, era proprietário de um pequeno hotel e de uma granja em Cachoeiro de Itapemirim. Fomos através do rio São Francisco, porque naquela época não se usava a parte costeira, haja vista que os alemães estavam afundando navios. Eu tinha em torno de 5 anos, mas me lembro de muita coisa. Vivemos na casa de meu tio e depois em Vila Velha.
Meu pai decidiu ir embora do Espírito Santo quando soube que iam construir Paulo Afonso. Pegamos carona até Recife num navio carregado com 90 mil sacas de café; depois um trem até próximo da margem esquerda do São Francisco, atravessamos para Propriá, em Sergipe, e daí fomos de trem para Serrinha. Ele foi a Paulo Afonso e já voltou empregado na Comissão da Divisão de Águas que ia construir a Usina Piloto.
Seu pai tinha promessa de trabalho ou contrato quando deixou o Espírito Santo?
Não tinha contrato nenhum. Foi com a cara e a coragem mesmo! Fomos para um lugarejo, se é que se pode chamar assim, chamado Forquilha, próximo da cachoeira de Paulo Afonso. Quando chegamos lá em maio de 1946, a nossa casa não estava totalmente pronta. Era a única casa de alvenaria no lugarejo, afora um galpão, também de alvenaria, onde funcionavam os escritórios e um pequeno almoxarifado da Comissão da Divisão de Águas. Estavam construindo uma caixa d’água e uma casa de dois pavimentos, que hoje se chama Casa de Hóspedes. O lugarejo não tinha nada. Com o desenrolar das obras, chegaram a trabalhar cerca de 400 pessoas lá. Para você ter uma ideia, a escola ficava numa parte do almoxarifado. Foi tudo improvisado, não tinha nada, nada, nada.
Como foi decidida a construção de Paulo Afonso?
Vamos voltar um pouco na história. Em 1932, o engenheiro pernambucano José Francisco Brandão Cavalcanti comprou um terreno em Petrolândia, na margem esquerda do rio São Francisco, em Pernambuco. A ideia dele era implantar uma granja para cultivo de frutas e algodão. Mas, para isso, precisava ter energia elétrica. Conseguiu licença para a construção de uma usina de 1 megawatt, ou seja, 1.000 quilowatts. Contratou o engenheiro, Lauro Borba, para fazer o projeto, e a construção seria feita pela Andrade Bezerra, empresa de Recife. O financiamento seria com recursos dele mesmo e de mais dois empresários pernambucanos, Armando Brito e André Bezerra. O fato é que eles não conseguiram terminar a obra. Em 1942, Getúlio Vargas nomeou Apolônio Sales ministro da Agricultura.
Ele convenceu Getúlio a assinar um decreto adquirindo todos os materiais e benfeitorias da granja e da usina em Petrolândia. Em dezembro de 1944 a usina deu o primeiro giro e em 45 entrou em operação. Mas Apolônio era homem de uma visão espetacular. Sua ideia era implantar 100 granjas semelhantes àquela de Petrolândia na margem esquerda do rio, em Pernambuco, e mais 100 granjas do lado direito, na Bahia. Só que ele precisava de energia elétrica.
Ali perto tinha a cachoeira de Itaparica, de 21 metros de altura, onde depois nós construímos um reservatório com uma barragem de 105 metros de altura e uma usina com a potência de1.500 megawatts. Na época, Apolônio pensou em construir uma usina de 5 megawatts, com possibilidade de ampliação para 15 megawatts e depois para 160 megawatts para suprir Recife que só contava com uma termelétrica de 23 megawatts de propriedade concessionaria da empresa American and Foreign Power Company, a Amforp, que atendia Recife.
Então determinou que o diretor do Departamento Nacional de Produção Mineral programasse o projeto junto à Divisão de Águas. Fazer uma usina de 5 megawatts numa barragem com 800 metros de comprimento era muito difícil. Os engenheiros da Divisão de Águas, Corrêa Leal, carioca, e Leopoldo Schimmelpfeng, catarinense, chegaram a preparar um anteprojeto, mas o custo da usina seria muito alto e a operação difícil. Então, Alves de Souza e Adozindo Magalhães sugeriram ao ministro fazer as usinas não em Itaparica, mas em Paulo Afonso. A ideia era construir em Forquilha a Usina Auxiliar (Usina Piloto) e também uma grande usina com previsão de 440 megawatts.
Antes da cachoeira de Paulo Afonso, o rio São Francisco se dividia em vários braços, formando um arquipélago fluvial com largura de 900 metros entre as margens extremas. O braço principal era o esquerdo. Do lado direito, tinha o braço da Tapera, que no trecho final era chamado de Velha Eugênia. Na cheia, um desses braços passava exatamente onde seria construída a Usina Piloto. Precisava então escavar um pouco mais esse canal e fazer a usina. As águas do braço principal e dos braços secundários se reuniam a montante da cachoeira, formada por várias quedas com desnível de 80 metros.
A finalidade da Usina Auxiliar era gerar energia para a construção da grande Paulo Afonso?
Inicialmente, era só para as granjas, tanto que eles só compraram um gerador, por falta de recursos. Mas o objetivo principal era atender Glória, Petrolândia, as granjas e também a construção da usina de 440 mil quilowatts de Paulo Afonso.
Havia outros projetos para a obra?
Na realidade, entre 1939 e 1949 foram quase dez projetos. Em 1939, os engenheiros Sebastião Penteado e José Antônio da Fonseca Rodrigues, fizeram o anteprojeto de usina com capacidade inicial de 147 mil quilowatts, em combinação com um arrojado esquema de transposição das águas do São Francisco, essa que se está fazendo agora. Souza Leão, também engenheiro da Divisão, propôs outro projeto, que seria feito na cachoeira de Paulo Afonso. Teve também um do Henrique Novaes, engenheiro do Espírito Santo. Um detalhe: nesse tempo, o pessoal do Sudeste não queria a construção de Paulo Afonso. Diziam que um investimento de 400 milhões de cruzeiros no Nordeste não se justificativa por causa do baixo consumo da região. Isso criou uma celeuma muito grande por causa dos custos. O Apolônio Sales optou pelo projeto Corrêa Leal e Schimmelpfeng que serviu de base para a proposta de criação da Chesf. Em outubro de 1945, Getúlio assina o decreto-lei 8.031, que constitui a Chesf juridicamente; assina o 8.032, que abre um crédito da metade do valor no Ministério da Fazenda; e o decreto 19.706, que autoriza a Chesf a explorar a parte hidráulica desde Juazeiro na Bahia até Piranhas. Observe um detalhe muito importante para entender o que fez Apolônio Sales: os decretos foram assinados em 3 de outubro.
Por quê?
Para mim, há três explicações aí. Getúlio vinha dizendo que o pessoal não estava mais comemorando, como devia, a Revolução de 30 – que aconteceu em 3 de outubro. E Apolônio captou isso. Outro motivo é que ele é devoto de Santa Terezinha, comemorada no dia 1º de outubro. Ele juntou essas duas coisas, mostrando que seria importante para o Brasil abrir essa frente lá. Embora se diga que Getúlio assinou de fato no dia 4, que é dia de São Francisco.
Agradou a todos os santos: Santa Terezinha, São Francisco e São Getúlio. [risos]
Exatamente. E foi aproveitado todo o projeto de Corrêa Leal e Schimmelpfeng. A única mudança importante foi a substituição dos quatro túneis de 1.500 metros de comprimento para adução da água até a usina por um canal a céu aberto, por sugestão do engenheiro Oren Reed da TVA, a Tennessee Valley Authority, para onde Apolônio havia enviado o anteprojeto.
As providências para a constituição da empresa só foram tomadas em 1947, dois anos depois, no governo Dutra. O que motivou essa demora?
Os decretos foram assinados no dia 3 de outubro de 1945, mas Getúlio e todos os ministros foram depostos em 29 de outubro. E veio um governo de transição, até que Dutra se tornasse presidente. Em outubro de 1947, Daniel de Carvalho assume o ministério da Agricultura. Ele e seu irmão, Afrânio de Carvalho, chefe de gabinete do ministério, abraçaram a ideia da construção de Paulo Afonso.
Mineiro com muita experiência, Daniel de Carvalho convenceu Dutra a levar adiante a criação da Chesf. Por sinal, Dutra foi o presidente que mais esteve em Paulo Afonso: cinco vezes durante seu governo e uma como ex-presidente. Dutra bancou aquilo ali. Ele convidou o engenheiro Antônio José Alves de Souza, diretor do Departamento de Mineralogia, para ser o organizador da Chesf.
Alves de Souza conhecia bem a região. Em 1921, ele e mais cinco colegas vieram para Juazeiro e Petrolina e fizeram um levantamento, a cavalo, durante dois anos, de todas as cachoeiras da região, fauna e flora, percorreram tudo. Alves de Souza preparou a documentação, aproveitou o projeto oficial e faz palestras nas capitais, para os governadores, para a indústria, para as assembleias do estado, comércio. Ele fez isso também para vender as ações da Chesf. A metade das ações seria do governo federal, com direito a voto, e a outra metade, sem direito a voto, seria das entidades e das pessoas que comprassem. Ele esteve em São Paulo para uma palestra na Fiesp e conversou com Marcondes Ferraz, engenheiro formado na França em 1918, ex-professor da escola de Itajubá, e fundador do primeiro escritório de consultoria do setor elétrico do Brasil. Alves de Souza solicitou a Marcondes que fizesse essa agenda. Em janeiro, as ações já estavam todas vendidas. Mestre Alfredo, meu pai, que estava desempregado na época, teve a ousadia de comprar 20 ações, que depois teve que vender porque não tinha como pagar. Mas ele acreditou na obra! [risos]. Conseguiram vender as 400 mil ações. Teve gente que comprou uma só.
A partir de então, como andou o projeto?
Foi eleita a diretoria da Chesf, o conselho fiscal e o conselho consultivo, composto por um representante de cada estado. Alves de Souza foi empossado presidente, Marcondes Ferraz diretor técnico, Carlos Berenhauser Jr. diretor comercial e Adozindo de Magalhães na diretoria administrativa. Até esse momento, todas as decisões eram do projeto de Corrêa Leal e Schimmelpfeng. Acontece que, logo depois de tomarem posse, Marcondes Ferraz e Berenhauser resolveram reconhecer a região. Marcondes foi acompanhado pelo Domingos Marchetti, um italiano que tinha vindo ao Brasil depois da Primeira Guerra Mundial e participado da construção do túnel 9 de julho em São Paulo e de túneis entre São Paulo e Santos. Marchetti foi o seu primeiro consultor técnico. Também convidou Rui Simões, que tinha uma empresa de topografia em São Paulo, e Corrêa Leal, como autor do projeto. Em Delmiro Gouveia, havia um pequeno aeroporto e então Marcondes Ferraz solicita ao médico Guido Aguirre, chefe do Serviço de Endemias da Bahia, seu avião emprestado para sobrevoar o arquipélago, a cachoeira de Paulo Afonso e o cânion do rio São Francisco. No dia seguinte, percorrem a região de canoa, para conhecerem bem todos aqueles braços e ilhas do arquipélago. Já de volta ao Rio de Janeiro, Marcondes forma uma equipe na Chesf para analisar os projetos, inclusive o oficial. Todos os projetos previam a instalação da usina num ponto alto, livre das enchentes no cânion do São Francisco, quando as águas chegavam a subir 30 metros. A instalação da hidrelétrica numa cota elevada resultaria em grande perda de potência. Marcondes Ferraz decidiu aproveitar os 80 metros de queda com a construção de uma usina subterrânea, o que era uma novidade nas Américas, mas na Europa era comum.
Que adaptações foram feitas no projeto?
Marcondes Ferraz faz quatro versões do projeto, na realidade, evoluções. Quando você chega lá, tem aquelas ilhas todas. Havia os registros da vazão feitas desde 1928, em Juazeiro, na Bahia, pela Divisão de Águas. Em 1937 foi instalado um posto em Petrolândia, mas em Paulo Afonso não tinha. Então eles instalaram dez réguas para a medição das vazões e da acidez da água, que é importante para evitar a corrosão nas tubulações dos adutores e no rotor e na turbina.
Com a vazão do rio em 1.300 metros cúbicos por segundo, as descargas sólidas de areia, pedra e materiais orgânicos foi da ordem de uma a duas toneladas por hora. Marcondes Ferraz projetou uma bacia de decantação para reduzir o efeito do material sólido, formada por duas barragens principais em forma de uma raiz quadrada com a tomada d’água no vértice. Na barragem Leste foram previstas a instalação de dez comportas no braço principal, oito no braço do Quebra e seis no braço do Taquari para descarga das águas excedentes. A barragem Oeste foi erguida no lado baiano com duas comportas no braço do Capuxu. Esse é o projeto inicial. Com mais conhecimento da região, o projeto inicial foi alterado para o que hoje está em Paulo Afonso.
E a casa de máquinas?
Ao analisar a rocha de Paulo Afonso, ele achou que era estratificada, em camadas. E o que fez? Colocou a casa de máquinas perpendicular ao cânion. Como não era especialista no assunto, contratou o Instituto Geológico de São Paulo e o Instituto Paulista de Tecnologia para analisarem. Nessa época, esteve no Brasil um professor francês, da escola de Paris, que era especialista no assunto. Então, Marcondes Ferraz consegue que esse professor fosse a Paulo Afonso analisar. No parecer diz que a rocha de Paulo Afonso não é estratificada, mas fissurada. Com isso, ele girou 90 graus a casa de máquinas, ficando paralela ao cânion, como está construída hoje: um salão dentro da rocha. Mas, por segurança colocou um pouco mais distante do cânion.
Você testemunhou as transformações provocadas com o início das obras?
Ao abrir o portão da minha casa e atravessar o que hoje é a Rua do Gangorra, eu já estava dentro do canteiro de obras da Usina Piloto. Eu me criei ali dentro, no meio daquilo tudo, me achando até um engenheiro vendo aquela obra. A Chesf chegou para valer em Paulo Afonso em outubro de 1948. E teve que construir uma cidade, porque ia ter 3 mil funcionários. O consultor jurídico, Afrânio de Carvalho, sugeriu à Chesf que cercasse a área do acampamento e da obra. E foi feita uma cerca de arame farpado. Os casebres que estavam lá dentro, da época da construção da Usina Piloto, tiveram que ser retirados para o lado de fora. Três empresas forneceram cimento para Paulo Afonso; uma delas, alemã, havia fornecido o cimento para a construção da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque. As pessoas aproveitaram os sacos de cimento para fazer as suas casinhas do lado da Bahia, surgindo então a Vila Poty. Do lado de Alagoas, onde seria construída a barragem do braço principal, surgiu a Vila Zebu. Eu me lembro que, com essa cerca, nos sentíamos totalmente guardados lá dentro. Depois, o diretor Dr. Amaury substituiu esta cerca por um muro de pedras, que alguns chamavam de “muro de Berlim”, “muro da vergonha”. Esse assunto foi parar na diretoria para autorizar a demolição do muro. Na verdade, Paulo Afonso foi o primeiro condomínio fechado da Bahia. Naquela região, num raio de 250 km, praticamente, Paulo Afonso comandava tudo. Nessas cidades do interior havia as famílias tradicionais, mas Paulo Afonso não tinha isso, porque vinha gente de todo o lado, do Nordeste, do Sul e de estrangeiros residentes no Brasil. Uma vez fiz um levantamento, e havia doze países representados. Eu dizia que parecia uma mini ONU. Marcondes Ferraz trouxe só um engenheiro do exterior, o francês André Jules Balança, especialista em hidráulica. Todo esse pessoal de fora que estava em Paulo Afonso veio da Europa depois da Segunda Guerra Mundial e foi para a Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. Quando a Chesf começou a divulgar essa obra, muitos foram trabalhar em Paulo Afonso.
Você foi colega dos filhos desses estrangeiros?
Sim, eu não me criei em Salvador ou Recife, eu me criei em Paulo Afonso. A filha de Cyril Iwanow, que era russo, hoje é grande professora em São Paulo, estudou com a gente em Paulo Afonso. A mãe dela foi minha professora de francês no ginásio. Todos os professores eram funcionários da empresa. Eles ensinavam de graça, mas eram dispensados de outras obrigações penas durante as aulas. Meus professores de Matemática eram os engenheiros! O de desenho era o chefe dos desenhistas, o professor de inglês era o tradutor oficial da Chesf. Era comum que as pessoas falassem três, quatro, cinco idiomas.
Marcondes Ferraz precisou de um engenheiro na área de hidráulica e modelo reduzido e não encontrou ninguém no Brasil. Ele foi buscar em Toulouse, na França, e conseguiu que o doutor André Jules Balança viesse por dez meses. Ele veio e ficou a vida toda. Foi meu professor de francês. Havia também muitos engenheiros brasileiros. Nós tínhamos de 100 a 200 engenheiros em Paulo Afonso. Hoje temos no Brasil, especialmente no Nordeste, médicos, engenheiros, professores, economistas, filhos de operários oriundos de Paulo Afonso. Havia um nível cultural muito alto. Recebíamos várias entidades nacionais e internacionais lá.
O maior desafio da construção de Paulo Afonso foi o fechamento do braço principal.
Para fazer o desvio de um rio, há três processos clássicos. Um deles é fazer um canal lateral, e com uma barragem de pedra desviar o rio para o canal. O doutor Balança fez provavelmente o primeiro modelo reduzido no Brasil para o estudo do desvio do rio e a instalação de comportas no braço principal do São Francisco. Era um trecho relativamente estreito no período da estiagem, mas profundo e impetuoso.
Estudaram fazer um canal de desvio com 350 metros de comprimento, mas o tempo para remoção da rocha seria longo e o custo muito alto. Além disso, seria preciso construir um enrocamento no rio para obrigar a água a passar pelo desvio. O Brasil dependia de equipamentos importados e a Chesf só dispunha de guindastes fabricados nos Estados Unidos, que suportavam 15 toneladas de pedras.
Calculei uma vez: cada caminhão basculante da International, por exemplo, teria que fazer cerca de 8 mil viagens para retirar todo o material.
Nós usamos esse processo em Itaparica, só que era um canal com pouca pedra. Então a Chesf desistiu disso em Paulo Afonso. Uma outra alternativa era a construção de túneis, mas a topografia de Paulo Afonso não permitia. Nós fizemos em Xingó com a construção de quatro túneis de 16 metros de diâmetro cada um, e por eles passavam de 2 a 3 mil metros cúbicos de água por segundo. A terceira opção de desvio é através de ensecadeiras celulares, compostas de cilindros para construir a estrutura de concreto das comportas. Se usa um gabarito dentro do rio, onde se instalam estacas-prancha de 10 a 15 metros de altura por 30 cm de largura e elas vão encaixando uma na outra. O gabarito tem duas plataformas interligadas por um tubo de onde se pode introduzir um outro tubo. Porque o rio é muito irregular para nivelar o gabarito. Só que, quando eu colocava uma estaca-prancha dessas, a água batia e envergava. Por quê? Porque a água com a velocidade de 3 a 4 metros por segundo tem um impacto de 200 toneladas! É aí que vem uma ideia genial de Marcondes Ferraz e da equipe dele. Eles projetaram e testaram no modelo reduzido um caixão metálico flutuante – o primeiro no mundo –, como se fosse um navio, de 18 metros de comprimento por 10 metros de altura, 6 metros de largura para funcionar como como anteparo contra a correnteza. Esse caixão flutuante seria lançado no rio, que depois se encheria de água, afundaria a montante do local de instalação do gabarito das células da ensecadeira. Era preciso experiência náutica, então foi contratada uma empresa francesa. Eles fizeram todo o projeto executivo. O caixão flutuante foi transportado em peças até Paulo Afonso, onde foi montado pela equipe da Chesf, ficando conhecido na gíria técnica como “navio”. Tinha uma base de concreto no interior e um sistema de amarração complicado que não funcionou direito. Marcondes Ferraz resolveu então amarrar o navio na margem esquerda do rio com cabos de longo comprimento. O engenheiro Ernani Gusmão, que mais tarde foi nosso diretor, recebeu a incumbência de comprar os cabos. Ele lembrou de um acidente que tinha acontecido pouco antes no bondinho do Pão de Açúcar no Rio de Janeiro. E descobriu que os cabos que tinham se desprendido do Morro da Urca estavam perfeitos. Ele fez a compra e mandou para Paulo Afonso. Também foram usados guinchos de um navio inglês que bateu e afundou no Rio de Janeiro.
Era a engenharia brasileira mostrando ser capaz de soluções muito originais.
Resultado: funcionou perfeitamente. Foram montadas oito células, todas com 15 metros de diâmetro, menos a célula 4 com 17 metros, na margem esquerda alagoana. O navio era posicionado no local de instalação da célula e imerso para montagem do gabarito e colocação das estacas-prancha. Dentro do cilindro de aço formado pelas estacas-pranchas, fazem uma base de concreto para impermeabilização do fundo, depois enchem com areia e brita até quase chegar perto da borda, e então colocam outra camada de concreto, porque na cheia a água podia passar por cima, removendo areia e a brita. Depois, bombeiam a água do navio, ele flutua e é deslocado para montagem da segunda célula. Assim, foram montadas as células da ensecadeira da margem alagoana.
Seu pai participou de tudo isso?
A equipe dele ligava as espoletas para detonar a dinamite e quebrar as pedras e também era o responsável pelas bombas de drenagem da água de dentro da ensecadeira. Na área isolada pela ensecadeira, a Chesf construiu os pilares para montagem de quatro comportas que asseguraram o fechamento da metade do braço principal. Removeram as células 1, 2 e 3, deixaram a 4, 5 e 6 no meio do rio, e tiraram a 7 e a 8. Como o leito do rio era muito irregular, a água chegou a passar por baixo, entre a estaca-prancha e a pedra do leito do rio. Então colocaram uma série de tambores numa plataforma com bombas para poder drenar essa água de dentro da ensecadeira, 24 horas por dia. Isso foi feito exatamente pela equipe de mestre Alfredo. A primeira etapa de fechamento do rio foi concluída no final de 1953, com a montagem de quatro das dez comportas previstas.
Faltava o outro lado, certo?
Acontece que o Banco Mundial fez um financiamento de 15 milhões de dólares para as obras de Paulo Afonso e contratou a firma de engenharia International, dos Estados Unidos, para dar o parecer sobre os projetos de Marcondes Ferraz. Um grande engenheiro norte-americano, Adolph Ackerman, que tinha vindo ao Brasil para ser vice-presidente da Light, conheceu a obra de Paulo Afonso e ficou entusiasmado. Pediu demissão da Light e foi trabalhar como consultor do Banco Mundial. Ele não concordou com solução de Marcondes Ferraz para o fechamento do lado direito do braço principal. Ackerman defendeu a ideia de construir um monólito, uma espécie de obelisco, que seria tombado dentro do rio. Isso foi feito pela própria International no Canadá, só que num rio muito menor do que Paulo Afonso. Imagine pegar um obelisco de 44 metros de altura e 10 mil toneladas e dinamitar a base para fazê-lo cair. A onda formada na queda poderia derrubar as três células que ficaram no meio do rio que seriam usadas na segunda etapa. Havia também o risco de obelisco cair longe, bater no fundo do rio e se quebrar em várias partes.
Marcondes Ferraz e Balança fizeram nove projetos. A velocidade das águas aumentara bastante em virtude do estreitamento do rio e já não permitia o uso do ‘navio’ como anteparo das células da outra ensecadeira que precisava ser montada. Marcondes Ferraz descartou a ideia do obelisco e idealizou um novo artifício para acalmar as águas, projetando a construção de um enrocamento a jusante das futuras células com o auxílio de duas estruturas semiflexíveis de aço, que ganharam o apelido de gaiolas. As treliças foram instaladas no rio e preenchidas por pedras que formara uma barragem, que amorteceu a água, facilitando a construção das células da ensecadeira da margem direita.
Você assistiu a isso?
Essa barragem foi fechada no dia 19 de julho de 1954. Marcondes Ferraz fez um discurso na barranca do rio. Enoch Pimentel, chefe do setor de Transportes, teve a ideia de hastear a bandeira do Brasil para comemorar o sucesso da operação. A bandeira foi hasteada por um operário da Chesf e pelos engenheiros Cyril Iwanow e Roberto Montenegro, que foi meu professor de Matemática e morreria em Furnas depois. Fincaram o mastro no enrocamento de pedras como um marco mesmo. Veja, eles já tinham feito as quatro comportas de um lado, faltavam seis. Como viram que não ia dar tempo, construíram quatro células no lado montante e quando foi inaugurada a usina estas células funcionavam como barragem. No dia 20 de outubro resolveram fechar as comportas para desviar a água para a bacia de decantação. Mas não podia fechar automaticamente, porque senão secava o rio, ia matar os peixes, havia problemas de navegação. Começaram fechando aos poucos, deslocando a água, e através das comportas do Capuxu, do Quebra e do Taquari vão mantendo o fluxo do São Francisco.
Em 28 de setembro, a bacia já estava na cota operacional. No dia 1º de outubro foi feito o teste no primeiro gerador. As linhas de transmissão para Recife e Salvador foram submetidas a testes nos meses seguintes. Em 1º de dezembro, a usina entrou em operação com duas unidades geradoras, servindo de imediato a rede de Recife em 50 hertz e em 14 de janeiro de 1955 Salvador em 60 hertz. No Recife, a Chesf colocou uns equipamentos conversores de frequência para atender a carga do sistema.
Por que 1º de dezembro? Nada acontece na Chesf por acaso. Esse foi o dia do lançamento oficial das ações da Chesf. Feito isso, programaram a inauguração, que aconteceu no dia 15 de janeiro de 1955, porque 15 de janeiro era a data de encerramento da venda das ações. Foi uma festa enorme.
Você esteve na festa?
Três eventos me marcaram muito. A missa celebrada no leito do rio São Francisco em 4 de outubro de 1953 em ação de graças pelo bom andamento das obras, a festa de inauguração da usina e a celebração do primeiro decênio da Chesf no monumento que está lá até hoje.
Na inauguração da usina, foi programada uma festa com 250 convites para autoridades brasileiras e estrangeiras, o pessoal do Banco Mundial, todos os governadores do Nordeste, vários deputados e senadores, alguns prefeitos, o povo da região e o pessoal da Chesf. O primeiro discurso foi de Alves de Souza, seguido pelo presidente Café Filho. Dom Jaime Câmara, deu a benção à usina. Mario Penna Bhering também participou. Cada diretor da Chesf foi presenteado com um relógio, com o nome da pessoa, a data e o nome da Usina pelo pessoal da Westinghouse. Também foi lançado um selo.
E Alves de Souza fez questão de registrar tudo.
Paulo Afonso tem mais de 20 mil fotografias. O original (negativo) dessas fotografias era em vidro. O diretor Berenhauser solicitou que fosse feito o registro fotográfico, que seria enviado para o Banco Mundial. Também foram feitos filmes de 15 minutos em preto e branco. Meu sonho é que a gente possa escanear todas essas fotografias, toda essa coleção! Não adianta ter isso para ninguém usar. A juventude e os pesquisadores devem ter acesso ao material escaneado. Esse material conta as histórias técnica e social de Paulo Afonso e da Chesf. Em Paulo Afonso, eles escanearam de maneira precária e estão me mandando para eu identificar as pessoas e os eventos. Toda semana eu mando umas 10 ou 20 fotografias com todas as informações. Fotografias tiradas de julho de 1949 até fevereiro de 1950, tem seus negativos em vidro, pois não se usava os negativos que surgiram depois. É um trabalho que merece ser recuperado.
O que significou a Chesf em sua vida pessoal e profissional, e como você vê o futuro da empresa?
Quando eu morrer, a Chesf vai ter que dar baixa no patrimônio [risos]. E eu não aceito que ninguém fale mal da Chesf. Eu digo sempre que a diferença entre Paulo Afonso e Paris é só o sotaque. No resto, Paulo Afonso é melhor. Tem uma história muito rica. Maria Bonita, Lídia a mais bela cangaceira e tantas outras são de Paulo Afonso! Aquele pessoal (e seus discípulos) que participou da construção teve participação em todas as grandes hidrelétricas brasileiras. Nós estamos falando de 1948 a 1950, não tinha computador nem pessoal com essa experiência. E foi feito um trabalho espetacular, uma obra fabulosa de engenharia em todas as áreas envolvidas. Estou ligado à Paulo Afonso desde os 7 anos e à Chesf desde os 10 anos de idade. Primário e ginásio em Paulo Afonso. Fiz o curso científico em Salvador apoiado pela Chesf. Comecei a estagiar na Chesf no segundo ano ginasial, fui engenheiro, chefe de serviço, chefe de divisão, diretor de suprimento, diretor de construção. Até hoje eu respiro a Chesf, tenho uma relação muito íntima com o rio São Francisco. Hoje a Chesf tem 21 mil quilômetros de linhas de transmissão e 10 mil quilômetros de fibra ótica. A Chesf tem 12 hidrelétricas, 3 eólicas e 3 solares e 141 subestações. Só tem uma coisa que eu não concordo: a privatização do rio São Francisco. Isso é uma loucura. Pelo que eu sei, os americanos privatizam a parte nuclear, térmica, eólica, solar, mas não a parte hidráulica. A parte hidráulica é a base. Temos que recompor as matas ciliares, o rio está sendo assoreado, está ficando raso e largo, isso mata o peixe e dificulta a navegação. Todos os afluentes estão morrendo. E há ainda 504 cidades que jogam dejetos no São Francisco. Isso altera a flora e a fauna. Está cheio de baronesa, um produto do esgoto que tira o oxigênio e mata o peixe. Não é só produção de energia, é turismo, abastecimento de água, transposição. É fundamental que se faça um trabalho de recuperação do São Francisco, o mais urgente possível. Como disse o amigo, mestre e historiador Paulo Afonsino Antônio Galdino, há o Nordeste AC (Antes da Chesf) e o Nordeste DC (Depois da Chesf).
Nota:
Esta entrevista foi publicada na 5º edição da revista Comunicação & Memória digital da Memória da Eletricidade, contendo sua entrevista/depoimento sobre Paulo Afonso I.
Segue o link de acesso: https://revistacm.memoriadaeletricidade.com.br/
“Este texto foi originalmente publicado na revista Comunicação & Memória da Memória da Eletricidade”.
Parabéns!Excelente trabalho!Luiz Motta tem uma memória privilegiada e é um grande escritor.Entrei na CHESF tbm em 1967 e acompanhei a trajetória profissional de Luiz, filho do mestre Alfredo que me deu a primeira aula de como manobrar uma subestação, usando a SE 44 (Igreja) como laboratorio.
Já li "Paulo Afonso: Luz e força movendo o Nordeste", e guardo com muito carinho, cujo autor é o entrevistado, Dr Luiz Fernando Motta. E agora, a Folha Sertaneja nos brinda com a magnífica entrevista do destacado engenheiro, rica e histórica, trazendo-nos muitos esclarecimentos e tirando-nos dúvidas sobre a grande obra de Paulo Afonso - vencer o grande São Francisco, os desafios, a inteligência dos engenheiros capitaneados pelo insigne Dr Marcondes Ferraz. - Guardo também um DVD com narrações do Dr Bret Cerqueira sobre vários fatos ligados à construção da usina de Paulo Afonso. - Dois pioneiríssimos, Dr Bret e Dr Luiz Fernando, dignos da atenção de quem ama a história de Paulo Afonso/Chesf. Parabéns, irmão Galdino. Parabéns, Folha Sertaneja. Parabéns, Dr Luiz Fernando, pela sua mente privilegiada e fértil.
Uma primorosa e histórica entrevista concedida por Luiz Fernando Motta Nascimento, engenheiro que dignifica a classe e que sempre respirou a CHESF desde a mais tenra idade.Mais uma vez a Folha Sertaneja, sob o comando e orientação do extraordinário Professor Galdino, presta um excelente serviço à memória da engenharia nordestina sediada em Paulo Afonso.
Magnissima entrevista de imensurável teor histórico, parabéns!
Excelente entrevista, uma aula de história sobre nossa Paulo Afonso. Parabéns!
Maravilhosa entrevista. Parabéns!