Nós, amantes do português, aprendemos a lidar, empregar e entender a língua nas nossas escolas lendo e pesquisando o que os grandes escritores produziram. Pois é de lei, entonces, que também aprendemos aqui no sertão, com os nossos sertanejos. Sói acontecer.
Já posso desconfiar de um sorriso matreiro no canto da boca do leitor. “Entonces” e “é de lei”, ouvimos por aqui. Ouvi “porra” num restaurante de Madri sem ter desconfiado de nenhum sorriso maroto na boca de ninguém. Foi de um garçom para outro: “Traga duas porras para essa mesa”. Prestei atenção e vi o outro garçom trazer dois churros grandes para o cliente. “Porra”, churro grande na Espanha, no nosso dicionário aparece como sinônimo de clava, pau pesado, cacete. Podemos verificar a derivação “porrete” que usamos no sentido diminutivo. Evidente que não aconselhamos ninguém pedir uma, duas ou três porras em Paulo Afonso. Peça sempre um, dois ou três churros!
O que poderíamos acrescentar ao nosso patrimônio linguístico a partir da nossa observação local? Vejamos:
. Vosmicê (vosmecê). A expressão original é a expressão pronominal de tratamento Vossa Mercê (como Vossa Senhoria). Mercê significa graça, paga. De Vossa Mercê, Vossemecê, Vosmecê, Você;
. Lampião gostava do seu parabélum (pistola automática de procedência alemã). Bellum, da segunda declinação em latim, significa guerra. Material bélico é material de guerra; para a guerra. Se alguém é belicoso, ele gosta de brigar. É famoso o ditado latino Si vis pacem, para bellum (se queres a paz, prepara-te para a guerra);
. “Djutório” (adjutório). Do latim adjutorium que significa ajuda;
. De um meu vizinho, não é raro ouvir a colocação enclítica do pronome em frases como “Você já consertou-lo?” (Você já o consertou?);
. O nosso “arretado” vem de “arreitado” (arreitar, provocar desejos sexuais);
. Usamos enxu para enxame (coletivo de abelha). Enxu é o nome de um vespeiro do Brasil.
. Doce e suave a expressão do sertanejo “ai água” para “a água”;
. Muro. O termo também é usado para expressar toda a área do terreno;
. Na nossa região, o termo “moderno” não é usado no sentido de “jovem”. Se você é moderno, você é atualizado, pra frente;
. “Carne ralada”, que se ouve na Grande Salvador, aqui é “carne moída”. O jovem do supermercado não vai lhe entender se você pedir carne ralada;
. Uma das expressões preferidas do meu amigo mestre João do Bucho era “É de lei”. A expressão significa algo que acontece sempre; que deve ser sempre de tal modo;
. Adonde vais? Adonde, mesmo que aonde. Em espanhol, “adonde”;
. Preguntar. Forma anterior ao popular perguntar. Em espanhol, usa-se pregunta e preguntar;
. Pro mode (pru mode). O significado é “para que”. No galego, a expressão é “por mor de”. O Aurélio registra “por mor de” no sentido de “por causa de”);
. Entonces (variação de entonce). Arcaico de “então” (Aurélio). O termo existe em espanhol;
. “Por causa que”. Esta bela expressão, muito usada pelos nossos sertanejos, significa “por causa de”, “devido ao fato que”. A expressão existe no italiano;
. Soer significa acontecer com frequência. O verbo sobrevive na expressão “como sói acontecer” (como sempre acontece). Na nossa literatura, já foi empregada a sentença “[Eles] soem ser ingratos”;
. “Te desconjuro”. Esconjurar significa amaldiçoar. Desconjurar significa atacar, exorcizar, lamentar, praguejar. O antônimo é bendizer;
. Te Deum, cântico de ações de graça, principalmente nas missas católicas, significa “A ti, ó Deus!”;
. Cizânia, que vemos geralmente na expressão “semear a cizânia”, significa joio, erva daninha [no meio do trigo]. Semear a cizânia significa semear a discórdia, o desentendimento.
Acabamos de pontuar algumas das nossas peculiaridades. Se você desejar tornar-se um erudito na língua portuguesa, leia. Leia muito. Leia tudo que lhe cair nas mãos. Aprende-se lendo (também ouvindo e assistindo a) o que os outros escrevem. Aprende-se muito mais lendo e observando os grandes escritores. As regras gramaticais devem vir depois da assimilação e do manuseio da língua. É como numa construção. Você primeiro adquire o terreno, providencia a papelada municipal, contrata os pedreiros e compra todo material necessário. Então você está apto a iniciar a construção (no caso, o estudo sistemático da língua). Anote: regras e gramática estão a serviço da língua. Servem para aperfeiçoar a comunicação. Tenha sempre em mente o legado de Monteiro Lobato: “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê”.
Creio ter convencido o nosso leitor que ele vive rodeado de verdadeiros mestres da língua portuguesa.
Francisco Nery Júnior
Excelente!!!
Se lêssemos mais evitaríamos as gírias que empobrecem nossa lingua, assim como os palavrões, rotina entre os jovens.