Um casal de idosos! Descendo do Juá, personagens perfeitos e prontos para um romance regional, em carroça de burro alcançaram o BNH. O burro atrelado em perfeito estado de trato. Em cima do estrado, a fiel cadela a simbolizar a fidelidade de quem é fiel sem obrigação; e sem pressão. Ela se sentia, entronizada na carruagem imaginária, a Cinderela dos Sertões. Pelo menos a mim me parecia. Interessante que ela não se arrastava, cansada e empoeirada, ofegante, língua estirada para fora, atrás da carroça como costuma acontecer.
Vinha bem acomodada, no alto e na melhor; acomodada pelos dois verdadeiros pais que a adotaram e ali estavam para amealhar o que quer que fosse para a sobrevivência dos três.
Pararam em frente a uma casa e pediram café. Não tiveram sucesso. Prosseguiram para outra e, outra vez, por qualquer razão irrelevante que não vem ao caso, nada aconteceu. Foram em frente. E pararam na minha calçada. Era cedo de manhã e eu ainda estava com as roupas de dormir. Por alguns minutos, tinha estado observando a aproximação dos dois como no Bolero de Ravel. Simples, pobres e maltratados da sorte, transmitiam uma harmonia e uma cumplicidade real.
Desta vez, comigo tentaram a sorte. E tiveram sucesso. Não por mérito meu, mas pela imposição do exemplo que a todos nós nos davam. Se só um prato do desjejum, do café da manhã, ou do breakfast para os internacionais; se só um prato existisse, entre nós três teria sido dividido.
De repente, um novo convidado apareceu. Era a cadela enjeitada da nossa rua que, useira e vezeira, se imiscuía. Para minha surpresa, a idosa senhora se valeu da sacola ao lado, retirou um bom pedaço de salame que algum bom samaritano lhe tinha antecipado e começou a dispará-lo em pedaços menores subsequentes para a cadela. Imagino que ela, com a sua fé de pequenina, estava certa que, amanhã, o seu salame de cada dia estaria assegurado.
Ainda os consultei se me ajudariam a me livrar de uma pequena lata de lixo por dez reais. A resposta foi positiva. Pechinchei por um desconto de cinquenta centavos numa tentativa sadia de quebrar o possível gelo da situação. O marido um pouco mais adiante, barriga abastecida e copo esvaziado, ela, desconfiada, mas já segura da situação, cabreiramente concordou.
Com dez reais no bisaco – o pedido de desconto foi apenas um chiste –, café da manhã realizado, picada de fumo e baforada de cigarro de palha garantidas, tocaram a burra e dobraram a esquina.
Pequeno já era e pequeno permaneci. Mais pequeno ainda do que sabia ser.
Francisco Nery JúniorLindo e emocionante texto! A sensibilidade ressuscita mortos e enche os olhos de quem se encontra vivo.
Excelentes coreografias clicando no Google: "Coreografia Bolero de Ravel".
Imortal querido, me encanta lê teus escritos em quaisquer seguimentos. Neste, me transportei pro real! Refleti sobre a vida simples do nosso povo sofrido, deixando para nós uma bela lição! Ama quem tem amor pra dá...
Parabéns ao site cúmplice e consciente da obrigação e do direito de educar a comunidade que, por sua vez, nos educa de igual modo.
Amei meu querido sábio prof.o senhor simplesmente arrasa bjs nara
Ops: Fabiano*
Que maravilha!!! Lembrei-me de Faria no, personagem de Vidas Secas- Graciliano Ramos. Nos tempos de hoje, com perdas de valores, com o capitalismo exacerbado, encontrar um cenário tão singelo feito esse, é prêmio! Parabéns pela atitude, e pelo poema narrativo.
Em atenção ao sugerido pelo autor, acrescentamos o vídeo com o Bolero de Ravel, com a orquestra de André Rieu. Boa audição!
Simplesmente fantástico. Parabéns, nobre confrade, Prof.° Nery.
Sugestão: vale a pena ouvir o Bolero de Ravel. Caravana de camelos se aproximando, arrastando desordem e pobreza, passando e desaparecendo caminho afora. Lindo de morrer.; Acesso fácil digitando no Google. Quem sabe o site facilita a vida do leitor colocando como apêndice da matéria, como sabiamente costuma fazer; como soe acontecer?