Entre Cavalos, Gatos, Cachorros e Pessoas
A Tragédia da Nossa Compaixão Seletiva
Luciano Júnior
Acordei hoje com uma notícia que misturava a doçura da compaixão com o amargor de uma realidade distorcida. O cavalo caramelo, sobrevivente da tragédia no Rio Grande do Sul, foi adotado, ganhou 50 quilos e está ótimo. Uma bela história de superação para começar o dia, pensei. Mas então veio a epifania: enquanto o mundo celebra a recuperação de um cavalo, quantas crianças, famílias e vidas humanas, igualmente devastadas pela mesma tragédia, permanecem invisíveis aos nossos olhos?
Vivemos em tempos curiosos, em que a indignação e o afeto parecem ter perdido a balança. Não me entenda mal, é maravilhoso que o caramelo – agora quase uma celebridade – tenha encontrado um destino mais digno do que os telhados onde foi visto pela primeira vez, perdido em meio às águas. Mas será que as lágrimas que derramamos por ele não são, também, uma maneira conveniente de ignorarmos a nossa culpa coletiva pela negligência às verdadeiras raízes do problema?
O cavalo virou símbolo. Sua imagem circulou mais rápido do que as denúncias de infraestrutura precária, as demandas por políticas públicas eficazes e os apelos por ajuda às pessoas que perderam tudo. Talvez, adotar um cavalo seja mais fácil do que confrontar a dura realidade de crianças dormindo em abrigos superlotados, mães sem acesso a tratamentos ou trabalhadores sem lar e sem trabalho. Afinal, o cavalo não nos questiona nem nos cobra. Ele apenas come, ganha peso e parece nos perdoar pelo caos que criamos.
Talvez, o caramelo seja também um reflexo de nossa necessidade de narrativas simples. Adotá-lo nos permite acreditar que estamos fazendo algo – que somos melhores, mais humanos. Enquanto isso, os "humanos" propriamente ditos se misturam ao cenário, invisíveis como os escombros deixados para trás.
No fim das contas, o cavalo, os gatos e cachorros são um respiro fácil para o ego. Um símbolo que nos consola, enquanto o real trabalho – o de reconstruir vidas humanas – continua à margem. Celebramos o caramelo porque ele não nos lembra o quanto fracassamos com os nossos próprios.