No princípio era o Caos. E só havia trevas. Urano, o Céu, se inclina sobre Gaia, a Terra, e dessa união surgem os Titãs, e depois os deuses do Olimpo, que em sucessivas gerações explicam o surgimento do mundo, segundo a mitologia grega. Em tudo se assemelham aos humanos – mas ainda não havia surgido na Terra o que depois viemos a chamar de homens e mulheres. Talvez fosse o verdadeiro paraíso.
Criados, enfim, homens e mulheres recebem de Epimeteu suas qualidades, e diferem de seus criadores: não são imortais. São semelhantes entre si, mas não são iguais. A partir de então, a longa história da humanidade segue seu curso. E hoje aqui nos encontramos, homens e mulheres desta Academia, e nesta saudação às mulheres, enquanto lá fora fazem a guerra, aqui lhes faço, em nome de todos, esta declaração de amor.
O mito de que as mulheres são inferiores, enfatizado pela cultura recente, dos quadrinhos e do cinema, projeta o estereótipo do homem das cavernas com um tacape nas mãos, arrastando a mulher pelos cabelos para o coito.
Mas, ora, além da Grécia também a Ásia, a China, o Japão, a Fenícia, a Mesopotâmia, a Assíria, Babilônia e Canaã, hoje Palestina, cultivam histórias diferentes. Desde o Paleolítico, o Neolítico e a Idade do Bronze, a mulher sempre foi respeitada. Homens e mulheres viviam em igualdade de condições – mas o papel mais importante era o da mulher. Nós, humanos, são sabíamos que a gravidez resultava do ato sexual. Portanto, a mulher seria um ser mágico, quase divino, capaz de gerar outros seres. A mulher, capaz de produzir e reproduzir a espécie, era mais importante do que os homens.
Estatuetas de homens e mulheres são encontradas juntas, nos sítios arqueológicos. Os túmulos são iguais. Não há hierarquia. A Vênus de Willendorf, esculpida há 28 mil anos na Áustria, com seios, nádegas e barriga protuberantes, simboliza a fertilidade feminina que se justapõe à fertilidade da terra, e não a um ideal de beleza. A Deusa da Serpente, na Ilha de Creta, há 8 mil anos, repete outras imagens e homenagens de diversas épocas: Mãe Terra, Mãe da Morte, Pássaro, Rã, Peixe, Porco-Espinho, Coruja, Urubu, Deusa Nutriz (Ama de Leite), Ave de Rapina, Mariposa, Abelha. Personificam a fertilidade, a maternidade, a transformação, a vida, a morte, a regeneração.
Neste passeio de 200 mil anos pelos caminhos da Mitologia e da Arqueologia, vemos que homens, mulheres e crianças viviam juntos, sem ascendência de uns ou de outros. Não havia casais. Até o dia em que o mistério da fecundação foi compreendido. Depois, com a ideia de propriedade, os primitivos distúrbios tribais evoluíram para combates ferozes, que a posteridade veio a definir como Guerras. Sendo necessário a força para defender-se, as mulheres e as crianças cederam o protagonismo aos homens. Daí começa a discriminação entre os gêneros – mas com base na força, e não no intelecto.
Recentemente, há apenas 3 mil anos, o poder das religiões, que também explicam o mundo, estabelece o patriarcado a partir da imagem de Deus como “Homem”. Os diversos livros que compõem a Bíblia (alguns, a Torá), incorporam versões, adaptando nomes e fatos, e se tornam a base do cristianismo e do judaísmo, além de influenciar o surgimento do Islã. No primeiro capítulo do Gênesis, Deus cria homem e mulher à sua imagem e semelhança. No segundo, Deus lhe dá uma companheira “idônea”, que no terceiro capítulo recebe o nome de Eva. Diz Adão, na Bíblia do Rei James: “Esta sim é osso dos meus ossos”.
Ora, então houve outra companheira “não idônea”? Diz o Talmud que sim: Lilith foi criada junto com Adão – portanto, antes de Eva. Mas ela se recusa a deitar sob ele por não se sentir inferior, e abandona o Éden. Ou seja: segundo o folclore judaico, Lilith rebelou-se contra a “superioridade” masculina de Adão, tornando-se um problema para o judaísmo e para o catolicismo, que são religiões patriarcais. No século 16, durante o Concílio de Trento, a Igreja torna “oficial” a Bíblia Vulgata, do século 4, que troca, em Isaías 34, a palavra “Lilith” por “ibis”, e assim Lilith desaparece da tradição católica.
Lilith, ou Eva, ou Gaia, ou Afrodite, ou Vênus, Mariposa, Rã ou Peixe. Não importa o nome, mas a imagem. Não importa o dia, mas a homenagem. O dia da Mulher é apenas uma data simbólica. Porque as mulheres e os homens são apenas duas metades que se completam.
Maria de Lourdes Teixeira foi a primeira mulher da Academia Paulista (1969). Rachel de Queiroz, da Academia Brasileira (1977). São apenas fatos históricos que lembram nossa luta pelo reconhecimento de seu valor... Em outubro, nós elegemos em Paulo Afonso a primeira Mulher Presidente da Academia de Letras. Infelizmente todas as homenagens tratavam da “primeira mulher”. É preciso, contudo, advertir e lembrar: votamos por seus méritos, e não por seu sexo. Não é o gênero, mas a competência, a capacidade, o mérito, que merecem os encômios, não é verdade?
Assim como fizemos, e fazemos, na cultura, na ciência e nas artes, com Marie Curie, Elisabeth II, Rosa Parks, Frida Kahlo, Anne Frank, Bertha Lutz, Joana D’Arc, Nise da Silveira, Simone de Beauvoir, Angela Merkel, Golda Meir, Billie Holiday, Cleópatra, Isabel de Castela, Carmem Miranda, Medeia, Pandora, Antígona, Electra, Penélope.
Desejo, em nome de todos, que aqui se registre nosso amor, nossa ternura e nossa gratidão por vocês existirem. Às nossas mulheres da Academia de Artes e Letras da AABB – Inês, Mazé, Rosa, Letícia, Patrícia, Helenita e Célia, e a todas as mulheres do mundo, dedico essas palavras de todo coração. E a Perpétua. E também a minha avó Rita, minha Madrinha Maria Rita, e a minha mãe Eva Rita.
Edson Mendes
AALAABB-Recife, 30/03/2022
Excelente, como sempre suas crônicas, seus artigos e senti a própria Penélope. Adoro seus escritos é agradeço, de coração, por está bela homenagem. Homens, homens que nós surpreendem sempre.Beijos no coração