Menino ainda, apeguei-me aos livros. E sempre os quis bem cuidados (hoje reconheço que há relíquias em sebos, mesmo desgastadas) – livros devem ser bem cuidados, tratados com carinho e buscados com sede de conhecimento. E quanto mais cedo, melhor. Eu gostava de encapar meus livros.
Um dia, retornando eu para minha casa, vi ao pé de um poste um pequeno volume caprichosamente envolto em papel verde – opino – a cor da alma. Incontinente, tomei-o. Queria o papel para cobrir mais um livro. Ao desfazê-lo, uma surpresa: era um rato embalado, com certa vileza, mas ainda não em decomposição. Perdi o papel e ganhei o desapontamento.
Humberto de Campos em suas memórias narra uma desobediência juvenil: cometeu o sacrilégio de pescar numa quarta-feira de cinzas. O anzol fisgou algo que precisou ser puxado com vigor. Seria o prato do desjejum religioso... O que lhe veio? Uma bota velha a incomodar-lhe a consciência. Fez-se um resumo: “Em toda a minha vida nada mais fui que um pescador de botas velhas”.
Nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis fala de um embrulho misterioso em que tropeçou, numa praia. Apanhou-o e seguiu, fugindo à possível espreita de algum repressor. Mas não sem receio. Curiosidade aguçada, desfez o embrulho. Nele havia algumas moedas – 5, 10 contos de réis? Não obstante o “bom acaso”, moço digno, foi ao chefe de polícia; depois guardou-as e pôs-se a avaliar: seria crime retê-las, uma desonra, algo “que embaciasse o caráter de um homem”? Seria, enfim, um “benefício da Providência”, que poderia ser usado numa boa causa.
Nenhuma síntese: ratos existem, que nada têm a ver com os livros, sobretudo os de Ética. Botas se desgastam e se enlameiam mesmo onde sobranceiam estuários. Embrulhos misteriosos, quanto não se percam, transitam nas surdinas da insensatez e da má conduta.
Eu, por meu turno, fiquei desapontado, como a pedir desculpas ao meu livro escolar; sem o papel verde, porém, hoje consciente de que os livros fomentam esperança.
Do Recife, Válter Sales