“Tu és o homem”. Trata-se de um conto de Edgar Allan Poe. É o título do livro do mesmo autor, (título original: Thou the man, publicado em 1844, no livro Godey).
O manuscrito encontra-se na Biblioteca Pública de Nova York. Causa-nos uma inveja... É que, entre nós, bibliotecas padecem da falta de incentivo. Decerto, em razão disso e da fragilidade do ensino, as falas e os discursos que ouvimos – parcos de conhecimento e de criatividade –, quando bons, constam apenas de obviedades e insolentes repetições, quase sempre sem a devida menção da autoria.
“Tu és o homem” – Ecce Homo – título do livro de Friedrich Nietzsche, reproduzindo Pôncio Pilatos ao apresentar Jesus aos judeus – “Eis o homem”, como a dizer “Rei ou senhor dos homens”. As paráfrases multiplicam-se, com fidelidade ou sacrifício de conteúdo.
O propósito deste despretensioso artigo, no entanto, não é falar de Poe, Nietzsche ou Pilatos. Este, lavou as mãos mas não tranquilizou a consciência. Os outros aí estão, a deleitar os amantes da literatura e os arvorados da filosofia. Nosso objetivo é, antes, referir e comentar o encontro, a um tempo, histórico e dramático, do profeta Natã com o rei Davi, representativo de muitas coisas; são lições a serem aprendidas e postas em prática, enquanto houver humildade e predominar o bom-senso.
Episódios como o que envolveu um profeta e um rei escondem-se, por vezes, nas famigeradas tiradas de corpo ou saídas por alguma tangente, costumeiras ou viciosas dissimulações.
O diálogo de Natã com Davi, em que o profeta lhe pôs o dedo em riste, é um exemplo clássico e mau a que recorrem pessoas dissimuladas quando querem fugir de uma situação embaraçosa. A retórica do desnorteado monarca ilustra posturas pragmáticas e utilitaristas. Mostra-nos um senso de justiça deletério, infelizmente não muito raro entre os humanos desumanizados. Ainda, lembra-nos bem a célebre frase do existencialista Jean Paul Sartre (1905-1980) – “O inferno são os outros” – é como enxergar os outros –, de inspiração satreana, que bem distinge o crítico pensador francês. Seria um vício da percepção?
Davi sabia o que aprontou. Faltou-lhe, contudo, coragem moral para assumir seus erros, até que Deus o confrontou por meio de um profeta. Natã foi direto, contundente. Esse profeta representava Deus e podia falar em nome de Deus. O rei não lhe retorquiu a exortação. Não havia como fazê-lo. Humilhou-se, então, diante do impacto avassalador de uma palavra biblicamente profética.
A empáfia de Davi chega a ser risível. Mas, humilhado, apresentou-se a Deus sem máscara, sem vestes reais, prostrou-se diante do Eterno Senhor e Rei. E, então, confessou: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos” (Sl 51.4). “Contra ti” – é o modo hebreu de ir direto ao âmago da questão. Diande de Deus ninguém dissimula com sucesso.
Só um encontro com Deus reconcilia o homem com Deus. E, uma vez reconciliado com Deus, tem tudo para reconciliar-se com o seu semelhante. Esse episódio lê-se em 2Sm 12.1-15. Como reflexo, textos impressionantes como os Salmos 32, 38, 51 e 139.
Cabe, por fim, mas sem a presunção de esgotar o assunto, mais uma elucubração, talvez algo muito intrincado para alguns: Há Davis e há Natãs. Os primeiros andam pela vida, a cirandar, no garbo de si mesmos. Os segundos, quando comissionados por Deus e com o caráter divino se comprometem, podem falar em nome de Deus, sem parolagens frívolas, frases de efeito adredimente ensaiadas; mas com a honestidade e a intrepidez dos profetas do Altíssimo.
Há Davis e há Natãs. Quando estes falam, há maior possibilidade de reversão de conduta.
Recife, 25.01.2024
Válter Sales
Davis e Natãs, além de reis e profetas, atingem o eu e a consciência, ambos feridos pela mácula do pecado. Mas, o reconhecimento da fraqueza e do tropeço, gerando arrependimento, permite bradar:"Pequei contra Ti. Perdoa-me, Senhor". Bela reflexão, meu mestre e amigo.