Antes que o pensamento voe, em desvio de rota ou de propósito, Duas Bocas: Boca de Ouro e Boca do Inferno. São dois homens de refinada cultura.
Por que duas bocas? Em razão de quê? São duas artes: a retórica e a escrita. Dir-se-á, duas expressões legítimas do que fazemos e do que somos.
João Crisóstomo (347-407) – Foi cognominado “Boca de Ouro” por sua singular eloquência, falando ou escrevendo. Doutor da Igreja de Roma, Arcebispo de Constantinopla, natural de Antioquia da Síria, Ásia Menor (atual Turquia). Erudito de primeira linha, deixou-nos obras sobre doutrina, retidão da vida e escritos sobre Paulo. Diante dos meus olhos, Comentários às cartas de São Paulo. Quando perguntaram a Gilberto Freyre sobre sua relação com literatura devocional, o mestre de Apipucos referiu homens dessa envergadura e desse tempo – “Depois desses, nada mais se escreveu”.
Gregório de Matos (1636-1696) – Advogado, poeta lírico-filosófico, reunia conteúdo sacro com sátiras eróticas e pornográficas. Nasceu em Salvador e morreu no Recife. Queria uma “literatura rebuscada e ornamentada”. Sua sátira, contudo, era considerada por demais pontiaguda. Atacava, sem dissimulação, o governo, os fidalgos e o clero. Valeu-lhe o epíteto de “Boca do Inferno” ou “Boca de Brasa”, e o degredo em Angola.
A literatura é um veículo poderoso, por vezes, temerário. Há quem morre de medo da palavra escrita ou falada, mas há quem com ela se deleite. É uma questão de gosto, de capacidade de entender o que lê e o que ouve e, até, de suspeição. Pela literatura somos atingidos ou aferidos. Faz bem ao intelecto ler uma página primorosa, como ouvir um grande orador.
Nem tudo que se escreve merece ser lido. Um bom leitor é um leitor seletivo. Igualmente, nem toda fala merece ser ouvida. Há discursos horríveis, desprovidos de conteúdo e de ordenação das ideias, sem detalhar questões de gramática. Esta, então, como sofre! Para falar e escrever bem, enxergo duas exigências: saber ler e saber ouvir. O que merece ser lido e o que merece ser ouvido.
No inferno certamente há bocas – bocas que enturvaram as boas ideias extraídas das boas palavras. Estas iluminam a vida, elevam o espírito.