noticias Seja bem vindo ao nosso site Jornal Folha Sertaneja Online!

Sementes do Raso... Por Edson Mendes

Dificulidades: a língua portuguesa do Juá

Publicada em 22/01/24 às 11:36h - 588 visualizações

Edson Mendes


Compartilhe
Compartilhar a noticia Dificulidades: a língua portuguesa do Juá  Compartilhar a noticia Dificulidades: a língua portuguesa do Juá  Compartilhar a noticia Dificulidades: a língua portuguesa do Juá

Link da Notícia:

Dificulidades: a língua portuguesa do Juá
 (Foto: imagem ilustrativa)

Dificulidades: a língua portuguesa do Juá

Edson Mendes 

Padrinho João me repreendeu, áspero: “Vóliti!”. E em seguida: “sálivi!”.

Titubeei, mas logo compreendi. Depois de subir a calçada, um grande esforço para meus 6 anos,  e vendo, da ponta dos pés, que ele estava na sala, sentado na cadeira de balanço, empurrei a porta e cometi o pecado de pedir a bença sem fazer a necessária salva, ou saudação. Voltei, então, rápido, de costas, fechei a porta, pus-me novamente empertigado e juntos cumprimos o velho ritual:

- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

- Para sempre seja louvado!

- A bença, Padinho João.

- Deus abençoi.

Como eu morava na cidade, comecei desde pequeno a me achar “civilizado”, uma vez que não falava ”errado”, como meus primos e parentes do Juá. Sem falar da experiência que tive com o Mestre Gervásio, quando, no primeiro dia de aula, ele me mandou que entrasse e fechasse a “posta”!

Para mim foi um assombro. Como era possível um professor falar posta em vez de porta? Fora posto a estudar o “abc” no Nambebé, em companhia de Bola e Dão, filhos de seu Cazuza, nosso “morador”. Já no dia seguinte estávamos, os três, a passar o tempo das aulas na estrada, comendo araticuns e atirando pedras nos passarinhos, costume esse que não chegou a se consolidar, pois meu pai logo o extinguiu com algumas chineladas. Voltei então à cidade, como agregado na casa de dona Raimunda, prima de minha mãe.

Hoje me detenho, vez por outra, a saborear o linguajar matuto, o dialeto sertanejo, a fala do meu povo a trazer de volta os tempos da infância descompromissada e feliz – que não voltam mais.

A ideia de que há uma ciência na voz do Juá só me chegou à consciência muito depois, quando li que “dialeto é a variante regional de uma língua” (Darmesteter).

Aldo Bizzocchi diz que “língua é um sistema de comunicação formado de sons vocais (fonemas), que se agrupam para formar unidades dotadas de significado (morfemas), que se agrupam para formar palavras, que se agrupam para formar frases, que se agrupam para formar textos”.

E aí se misturam a língua, o dialeto, o território, a história, a geografia e a gramática, constituindo-se afinal, da minha lembrança infantil, a explicação do adulto: há o Brasil, mas há também o sertão brasileiro, o grande sertão nordestino de Zé Lins do Rego, de Graciliano Ramos, de Franklin Távora, de Raimundo Reis, de Ulisses Lins de Albuquerque, de Ascenso Ferreira, de Jorge de Lima, de Euclides da Cunha.

E há, por fim, o meu sertão particular, o grande sertão do Juá, e sua periferia: Nambebé, Brejo do Burgo, Várzea, São José, Caiçara, Campos Novos, Pocinhos, Macururé, Uauá, Gloria, Jeremoabo, Paulo Afonso...

E é nesse pedaço do meu sertão particular que insiro a explicação de Gilberto Freyre: “É a massa, o povo, a província, a região, a aldeia, o próprio analfabeto que dá força aos idiomas, que lhes dá viço, saúde, turbulência, diversidade, tudo que na língua se opõe aos excessos de graça ou de arte de estilo, de uniformização de pronúncia” (...).

Diz Durval Muniz de Albuquerque Jr, citando Mário Marroquim, que, “devido à extensão territorial do país e ao contato com diferentes grupos étnicos e linguísticos, a língua portuguesa teria se segmentado em línguas regionais, em torno dos diferentes núcleos de povoamento e colonização”.

Ora, pode-se deduzir que nos diferentes núcleos do interior do país a língua portuguesa se estabilizou em suas formas arcaicas, imunes à oxigenação e às mudanças que poderiam advir por conta de migrações “estrangeiras”. O Juá de minha infância, portanto, não falava “errado”, necessariamente – isolado, distante, com imensas dificuldades de locomoção e interação social, falava também o português original de sua formação, com derivações a partir da contribuição africana e indígena, naturalmente modificado e acrescido de novas pronuncias advindas dessa circunstância endógena.

Assim é que, desse português arcaico, aos meus ouvidos soavam estranhamente alguns vocábulos que me pareciam esdrúxulos: amenhã, coidado, fruita, loita, causo, apôis, deferença, dispois, dereito, premêro, entonce, saluço, reinar, punir (defender alguém)...

Hoje, é claro, com as estradas e os meios de comunicação de massa, tudo vai mudando... O Juá tem água encanada, energia elétrica, televisão, internet, postos de saúde, escolas, transportes, igrejas, restaurantes, comércio; mas tem também barulho, lixo, poluição, crimes, violência – e aos poucos a linguagem antiga vem se restringindo, sem fôlego suficiente para resistir aos novos dialetos da modernidade...

Mas continuamos todos por aqui com o nosso “falar nordestino”, de pronuncia demorada, arrastada. Falamos cantando, como dizem os filólogos. Trocamos o “e” pelo “i” (di manhã, di tarde), e o “l” pelo “r” (sordado/soldado). Engolimos os “s” e os “r” finais (vamu/vamos; comê/comer). E anasalamos a pronuncia com a presença de um “m” ou “n” posterior (ingnorante, inlustre).  A “classe educada” diz mubilha, familha; o povo diz mubia, famia. E ólho e ólio são corruptelas de óleo... Cultos e incultos pronunciam, indistintamente: quejo, bandera, brasilera, mantega, bejo, fejão, pexe...

Concluo aqui lembrando meu Tio Joaquim a dizer sóli, doutôri, sáli, acrescentando um “ï” aos “l” ou “r” finais (sol, doutor, sal), como era praxe. E quando me chamava de malino, eu gostava! Depois descobri que ele suprimia um “g” (maligno)...

E ainda esta homenagem final: quando diziam Baxa do Chico, Baxa Grande, Baxa da Égua, meus iletrados tios e primos não estavam falando errado, como eu supunha. Apenas seguiam, ali no Juá, no Raso da Catarina, o exemplo culto e castiço do vate português:

Logo os Dalmatas vivem; e no seio

Onde Antenor já muros levantou,

A soberba leveza está no meio

Das águas, que tão baxa começou.

Lusíadas, III, 24

Fontes:

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999

MARROQUIM, Mário. A Língua do Nordeste. Pernambuco e Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2008

REIS, Roberto Ricardo do Amaral. Paulo Afonso e o Sertão Baiano: Sua Geografia e Seu Povo. Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 2004

 

31/08/2017

edsonmal@uol.com.br

(81) 98105-1952




ATENÇÃO:Os comentários postados abaixo representam a opinião do leitor e não necessariamente do nosso site. Toda responsabilidade das mensagens é do autor da postagem.

4 comentários


Aníbal Alves Nunes

25/01/2024 - 11:29:08

Nosso notável Edson Mendes me fez viajar pelos sertões de Sertânia e lembrar dos tios e tias que, tão semelhantes aos povos do Juá, pronunciam palavras suprimindo ou incluindo letras não existente nas mesmas.


Isac de Oliveira

25/01/2024 - 10:46:08

Esse texto é espetacular, me deleitei. O nosso erudito Edson Mendes poetizou o linguajar das pessoas comuns, simples, que têm, como se diz, "papo reto", enfim, afastou a pecha preconceituosa que pesa sobre a fala do homem do campo, um texto humanizado, como assim o é o seu autor.  Não menos poético, o nosso Nery, igualmente erudito, arremata em resposta a Edson, com se estivéssemos assistindo uma dupla de repentista, duelando com as palavras. Lindo!


Regina Borges

22/01/2024 - 12:50:29

Menino, mas que viagem mais arretada de boa...!Parabéns!


Professor Galdino

22/01/2024 - 12:08:48

Uma pérola guardada desde agosto de 2017 – Bom dia, Edson Mendes, cidadão do Juá. Rapaz, essa sim, uma pérola que qualquer filólogo, gostaria de ter para enriquecer a sua aula, seu conhecimento sobre os muitos falares desse nosso rico Brasil. O melhor de tudo isso é que estas pérolas da tua e da minha infância, ainda podem ser encontradas por aqui, pertinho de nós, com uma força linguística e uma poesia que deixa os que acham que são “sabidos”, porque frequentaram as universidades, envergonhados com essa sabedoria das raízes sertanejas, de quem nunca foi numa escola e que, assim, de forma simples e direta, se comunicam sem a menor "dificulidade". Pra você, que nos mostra estas coisas maravilhosas de que parecemos, nós, os pseudo-sábios, ignorar quando, na verdade, devíamos estar era envergonhados por não aplaudir tanta riqueza. Parabéns, Edson Mendes, filho de D. Rita e de Seu Pedro Mendes!!!


Deixe seu comentário!

Nome
Email
Comentário
0 / 500 caracteres


Insira os caracteres no campo abaixo:








Nosso Whatsapp

 (75)99234-1740

Copyright (c) 2024 - Jornal Folha Sertaneja Online - Até aqui nos ajudou o Senhor. 1 Samuel 7:12
Converse conosco pelo Whatsapp!