Ainda sobre o todo, e o tudo, e todo mundo, e as partes, disse um dia Galileu que a terra gira em torno do sol, contrariando-nos a todos em nossa certeza de ser a terra o centro do universo. Condenamo-lo, herege, e o exilamos, magnânimos, com a pena do ostracismo em sua prisão domiciliar. No dia 17 de fevereiro de 1600, sem nenhuma magnanimidade, com pior sorte - mas em nome de Deus e em benefício da humanidade, Giordano Bruno foi queimado, vivo, em cerimônia pública no Mercado das Flores de Roma, por defender a hipótese heliocêntrica de Copérnico.
Repudiar uma nova ideia, que se contrapõe à nossa verdade, é um comportamento basilar, e atávico. Persistir no erro, entretanto, não é apenas um paradigma, mas também um paradoxo, porque reflete o absurdo de nossa existência. Somos todos animais, sim, mas enquanto alguns de nós agem apenas por instinto, outros também pensam. Nestes, conhecidos como sapiens, a área reptiliana original do cérebro ainda coexiste com o córtex, responsável pela capacidade de reflexão, linguagem, julgamento e percepção, que nos facultam pensar antes de agir. E aprender. Por que não o fazemos?
Mais que um problema científico, trata-se de um problema comportamental. Errar é humano, dizemos. Persistir no erro também será? Somos incompletos e imperfeitos, mas evoluímos, e isso nos faz a cada dia diferentes, capazes de aprender, e desaprender, e mudar. Porque o homem não é o que é, mas o que não é...
Nesse jogo de palavras, às vezes sem palavras, mas sempre um jogo, caminhamos aqui sobre as águas do mar incognoscível. Onde está o nexo com o todo, e o tudo, e todo mundo, e as partes? As mentes não se comunicam – mas um dia inventamos a palavra, e daí se tornou possível transmitir o que pensamos. Por este artifício as mentes se encontram, copulam e procriam. Nascem as ideias, o conceito, a crença, o crime, a pena, a fogueira. Mas também a dúvida, o verbo, a prosa, o verso, a arte, o argumento. E a poesia – um pouco de luz no mar das certezas, onde as almas se encontram sob o sol do meio dia.
Se você não me conhece, mas me vê, dá-se o milagre: é este o fim. O poema precisa de quem faça, e de quem veja. Acende-se o fogo com as duas mãos. Fuzil e pedra. De que vale o fuzil sem a luz dos olhos?
Antonio Carlos Secchin nos adverte: “O poema sabe o que o poeta ignora. Se eu já soubesse o que o poema diria, não precisaria escrevê-lo. Escrevo para desaprender o que eu achava que sabia sobre aquilo que me vai sendo ensinado enquanto escrevo”.
Paulo Gervais nos ilumina: “O esforço de fazer a linguagem capturar a experiência das coisas e dos acontecimentos é desde sempre da natureza humana: como quem carimba a própria mão na parede da gruta pré-histórica ou esculpe num pedaço de madeira a força misteriosa do mundo, a palavra tanto carrega em si o seu inventor quanto a sua experiência. Porque dizer a palavra é dizer o mundo na medida do homem, e a poesia melhor ainda o diz, porque quer dizê-la com palavras escolhidas, pedra desbastada até o miolo precioso, a joia rica, que se engasta num cordão de outras palavras até conseguir a melhor expressão. Não se inventam as palavras; elas são o nosso patrimônio. Por isso, qualquer poema é metade de quem faz e a outra metade de todo mundo; assim é possível que a nossa experiência, individual, com nome e autoria determinada, seja lida pelo outro, capaz de lembrá-lo que somos profunda e demasiadamente humanos.”
E eu, que nada ensino, nem advirto, nem ilumino, para findar esta peroração, que já é tempo, me junto a Borges e a Tonho, e por osmose, sendo símile, cumpro a síntese:
Borges disse que o gosto da maçã não está na maçã, nem na boca. Está no encontro da boca com a maçã. É impossível existir a Poesia, ou qualquer coisa, sem a cópula. As partes são impossíveis se não estiverem unidas e reunidas, tecidas. Mesmo as que se opõem, mesmo as que se atraem, medidas, desmedidas. A maçã não tem sabor, nem a boca. Mas quando elas se encontram nasce o sentimento, e a percepção, e daí o usufruto e a fruição – coisas mais importantes do que escrever e contar.
Sem argamassa, nenhuma obra se sustenta. Sem errar, nada se aprende. Desaprender, devemos lembrar, não é esquecer, mas a outra metade da fidúcia no processo de aprendizagem. O que lembramos como erro é, na construção do conhecimento, a sua matéria prima: pedra, e cal, e água, e barro. O que esquecemos, por desdouro, se repete – não mais como ventura, agora uma tragédia.
Na esquina do Juá, que, como todos sabem, fica lá perto do fim do mundo, Tonho me disse certa vez: “A segunda melhor coisa do mundo é aprender. A primeira é errar”.
01.05.2024
Mestre Edson Mendes!Excelentes ensinamentos.Gostei destas reflexões:Sobre poemas:Antonio Carlos Secchin nos adverte: “O poema sabe o que o poeta ignora. Se eu já soubesse o que o poema diria, não precisaria escrevê-lo. Escrevo para desaprender o que eu achava que sabia sobre aquilo que me vai sendo ensinado enquanto escrevo”.Na esquina do Juá, que, como todos sabem, fica lá perto do fim do mundo, Tonho me disse certa vez: “A segunda melhor coisa do mundo é aprender. A primeira é errar”.